Por João Bernardo

A lista de fenómenos que expus na segunda parte deste ensaio, avassaladora na sua novidade, não cabe nos modelos teóricos já existentes, e não surgiu ainda um modelo que forneça uma explicação coerente e integrada. Tenta-se esticar numa ponta e nas outras, mas torna-se cada vez mais patente que os velhos formatos já não servem.

1. As dificuldades

A partir do começo da ciência — ou seja, da experimentação laboratorial e da observação controlada — nos países do centro e do norte da Europa no século XVII, o progresso científico tem sempre atravessado três fases. Primeiro, descobrem-se factos novos, que se tenta integrar nos modelos explicativos já existentes, com dificuldades crescentes. Finalmente, cria-se um modelo novo, capaz de explicar os factos descobertos. A fase intermédia, mais ou menos longa, é repleta de falsos caminhos, becos sem saída e numerosas frustrações. Na história da ciência, talvez mais ainda do que na dos outros domínios, os erros são tão importantes como os êxitos. É um dos temas em que é indispensável uma historiografia do Não [1]. Assim, o principal motor do progresso científico é o choque entre o empírico e o teórico. E como a ciência rapidamente deixou de ser homogénea e se dividiu em ramos, cada vez mais especializados, em qualquer momento os processos de superação dos modelos caducos e de gestação de novos modelos ocorrem ora num ramo ora noutros, sendo muito raro um avanço simultâneo.

Porém, a elaboração de um novo modelo explicativo integrador, além das dificuldades usuais, como a inércia intelectual e o peso das ortodoxias, depara actualmente com obstáculos suplementares e vai na contracorrente das doutrinas académicas que adquiriram a supremacia nas ciências sociais — chamo-lhes ciências só por hábito.

Por um lado, tornou-se hegemónica a noção de que não existem factos, mas apenas constructos, e de que a linguagem, sendo simbólica, não se refere directamente aos factos. A política passou a incidir no dicionário, acessoriamente nas estátuas, e — demonstrando uma ridícula ignorância tanto da história como da etimologia — criou-se uma lista, ilimitada e em expansão, de termos e gestos admitidos ou propostos como politicamente correctos, enquanto outros são expurgados e banidos. A realidade dos factos, é claro, fica na mesma.

Por outro lado, tornou-se hegemónica a noção de que qualquer sociedade é estritamente auto-referente, impedindo a história comparada e liquidando uma visão global da humanidade que, embora internamente contraditória e desfasada, seja conjunta. Os identitarismos de género ou étnicos, quando não mesmo francamente raciais, são incompatíveis com a historiografia.

Neste duplo contexto é especialmente difícil a elaboração de modelos integradores, mas o acumular de dificuldades só torna a tarefa mais urgente.

Perante a falência das várias ortodoxias na análise ou, pior ainda, na simples aceitação dos novos factos, atravessamos uma época em que devem proliferar as heterodoxias, para actualizar e refazer os antigos modelos.

2. Talvez sim

O indispensável e urgente abandono das ortodoxias é facilitado pela generalização de um fenómeno que noutra época a maioria dos marxistas classificava como alienação, e talvez ainda o classifique, entendida a alienação simplesmente como um desinteresse pela política e nomeadamente pela intervenção política. Ora, não só a génese desse conceito é complexa como, na sua progressão da filosofia para a economia, Marx superou-o pelo conceito de mais-valia. O modelo marxista da exploração foi a nova forma de entender a realidade antes concebida como alienação, o que fornece mais um argumento para definir a exploração em termos de tempo e de desfasamento entre tempos, lançando uma ponte entre ambos os conceitos. Porém, reduzida pela maioria dos discípulos à trivialidade com que frequentemente se apresentam as noções de Marx, a alienação, já não um conceito mas uma simples palavra, serve para designar o alheamento da política.

Com efeito, verifica-se por todo o mundo uma elevadíssima taxa de abstenção eleitoral, que não denota qualquer recusa activa da democracia representativa, mas simplesmente um distanciamento. Não se trata de substituir as urnas pela revolução, mas de ficar em casa ou ir à praia nos dias de eleições. E se em vez de considerarmos esse alheamento como um factor negativo o entendermos, pelo contrário, como um mecanismo de auto-imunização? Se admitirmos que a indiferença relativamente às disputas entre os partidos parlamentares e às ideologias em voga é um triunfo do bom senso e dos pés na terra?

Nesta perspectiva, apercebemo-nos também de que o analfabetismo funcional e o simples desinteresse pelo estudo podem interpretar-se como uma relutância à inserção na ética do assalariamento, correspondendo, no campo laboral, à abstenção eleitoral e ao distanciamento da política. Uma vez mais, tratar-se-ia de um refúgio, um baluarte, um terreno vazio onde pode germinar outra coisa. Terreno vazio? Se eu concebo a arte como um espelho em que cada espectador se projecta [2], não poderá também suceder que algo de mais profundo seja visto ou ouvido nos produtos que a indústria cultural difunde com o objectivo único da futilidade? Sem dúvida que sim, e será uma porta de saída, se existir saída.

Esse varrer do terreno há-de apressar a superação dos velhos modelos e facilitar os primeiros esboços de formulação de modelos novos. Na vida do dia-a-dia, a condição inicial para beneficiarmos da déblayage é voltar costas, na medida do possível, aos ambientes tanto da velha militância ortodoxa como da nova militância identitária e ecológica. Se algum pensamento revolucionário e alguma acção revolucionária ressurgirem, será fora desse âmbito, nos conflitos sociais dispersos, ignorados do público porque se mantêm exteriores aos grandes aparelhos ideológicos. Aliás, não frequentar os meios da militância ideológica é hoje uma condição de sanidade não só política, mas ainda mental. Deixemos os moribundos da esquerda pré-galilaica seguir o destino dos mortos e vejamos os agitados da esquerda esponja como palhaços do grande circo.

3. Talvez não

É possível que a esperança não tenha realidade senão na minha cabeça, porque outro desfecho é também verosímil, ou mais ainda — que a indústria cultural submerja tudo numa massiva futilidade, até chegarmos à morna distopia do bem-estar. Cada um inventa o seu Fim da História, que seria aqui estar infinitamente saciado. Mas, ao contrário dos sonhos cor-de-rosa que ornamentam a esquerda, só existirá salvação se persistir a infelicidade e o descontentamento. Acreditar num horizonte de felicidade é uma ilusão destinada a suportar os horrores — previsíveis — que hão-de chegar amanhã. O anarquismo anunciou a possibilidade de uma sociedade sem opressão e o marxismo antecipou o fim da exploração, mas é necessária uma verdadeira candura para supor que a infelicidade se reduza à exploração e à opressão. Uma das fatalidades da esquerda, e não das menores, foi ter esquecido — no dia-a-dia e nos programas para o futuro — a vida privada, e é nela que residem as sementes da infelicidade. Este dilema ficou colocado por Dostoevsky num poema imaginado por Ivan Karamazov:

Cristo ressuscitara em Sevilha, no século XVI. Não pregava, não falava, mas a aura que dele emanava, «um sorriso de infinita compaixão», tornava-o reconhecível e a multidão seguia-o, até que o Cardeal Grande Inquisidor o mandou prender. Tu de novo! — exclamou o Grande Inquisidor. Há mil e quinhentos anos vieste trazer a infelicidade aos homens, porque lhes ensinaste que eram livres de escolher, e a escolha traz o sofrimento, a própria escolha é um sofrimento. «Nada é mais sedutor para o homem do que o livre arbítrio», acusa o Grande Inquisidor, «mas também nada é mais doloroso». Agora eu desfiz a tua obra, sou o único a assumir o sacrifício da escolha, por isso suporto a cruz da liberdade e padeço-lhe as agonias. «Ele gaba-se», explica Ivan, «de ter suprimido a liberdade, com o objectivo de tornar os homens felizes». Tornei a humanidade feliz, diz o Grande Inquisidor, porque a mantenho afastada da tua mensagem de liberdade. No final, Cristo repete o antigo gesto e, continuando em silêncio, beija os lábios do Grande Inquisidor. «Vai-te», diz-lhe então o Inquisidor, «e não regresses mais… nunca mais!». E Cristo desaparece nas ruas de Sevilha [3]. Para ser livre é preciso assumir a infelicidade que resulta das escolhas, foi esta a lição de Dostoevsky.

Ora, multiplicam-se hoje os psicólogos e uma massiva propaganda esforça-se por nos convencer de que todo o desconforto psíquico é uma doença, destinada a ser curada. A depressão é apresentada como um mal, em vez de um sinal de lucidez. Agora, quem sente alguma originalidade ou corre para o terapeuta ou procura impô-la aos outros como uma identidade — geralmente as duas coisas juntas.

Todavia, mesmo nas épocas desertas houve uma dúzia de pessoas, ou meia dúzia, que mantiveram aceso o fogo. Prevendo o pior que se avizinha, subsiste esta esperança. Ou não.

Notas

[1] João Bernardo, «Para uma Historiografia do Não», Passa Palavra; Id., «Em Busca do Não», Passa Palavra.
[2] João Bernardo, «Arte e Espelho», Passa Palavra, págs. 38-48.
[3] Fyodor Dostoevsky, Os Irmãos Karamazov, Segunda Parte, Livro V, capítulo 5.

As ilustrações reproduzem obras de Owen Gildersleeve & Stephen Lenthall.

A primeira parte deste ensaio pode ser lida aqui, e podem ler aqui a segunda parte.

5 COMENTÁRIOS

  1. Sobre a abstenção e a aparente apatia, me faz lembrar o Sombra das Maiorias Silenciosas, da Baudrillard. No caso do francês, essa apatia ele argumenta como uma espécie de resistência, de não colaboração.

    Pensando a classe trabalhadora de hoje, principalmente os jovens que formam os estratos baixos do proletariado, é evidente que, pelo menos no sul e sudeste do Brasil, possuem uma percepção em geral equivocada da realidade. Estão bastante submersos no que no marxismo se chama ideologia. E uma grande adesão à extrema-direita que se baseia em mentiras grosseiras indica isso também. Porém, penso que existe uma verdade nesse proletariado não ser seduzido ou não se identificar com o discurso e imaginário da esquerda. Existe um conhecimento prático, não elaborado nos trabalhadores. Algo até mesmo pré-reflexivo. Aquilo que faz os trabalhadores não se engajarem numa luta que consideram improvável de ser vitoriosa. A esquerda fala de coisas improváveis, pois hoje vão contra o sentido da história (a esquerda está presa em conceitos do mundo fordista em ruínas, e destruído em parte pela própria ação dos trabalhadores). E creio que essas massas de jovens proletário (e não tão jovens) percebem isso pela sua vida cotidiana. São os liberais que têm conseguido avançar num discurso compatível com a realidade material e o sentido da história para esse proletariado.

    Não vejo por onde evitar que o mundo de uma forma geral, e o Brasil com certeza, mergulhe na escuridão neofascista (ou de extrema-direita para quem preferir não gastar o conceito) por pelo menos uma geração (sendo otimista). E também acho que um possível novo projeto emancipatório, ou ao menos lutas progressistas que talvez ocupem o lugar da esquerda, será formado longe da atual esquerda. Possivelmente com envolvimento de pessoas que vieram da atual esquerda, mas que saíram totalmente da caixa. Mas não acredito que consigamos enxergar nada em curto prazo. O interregno para aparecer um novo modelo será longo.

  2. 《[…] mas torna-se cada vez mais patente que os velhos formatos já não servem.》

    《Perante a falência das várias ortodoxias na análise ou, pior ainda, na simples aceitação dos novos factos, atravessamos uma época em que devem proliferar as heterodoxias, para actualizar e refazer os antigos modelos.》

    As dificuldades são tamanhas que mesmo uma série de artigos como esta, apesar de reconhecer a falência dos modelos e fazer um apelo às heterodoxias, ainda assim permanece cativa no labirinto dos formatos obsoletos.

    A compreensão (e a proposta de ação dela decorrente) da atual metamorfose do Capitalismo (e as novas formas de fascismo dela germinando) exige uma brutal quebra de paradigmas.

    Dificilmente um único autor será capaz de superar sozinho este desafio.

    Aqui e ali, cá e acolá, contudo, surgem os lampejos de um outro (como aqui denominado) “modelo integrador”.

    Distinguir com atenção esses pontos de luz na noite escura é crucial, como também não se deixar confundir pelo que não passa de mera idiossincrasia.

    《Enquanto a destruição criativa se verificar, o mecanismo da produtividade acelera-se e o capitalismo, globalmente considerado, desenvolve-se. Mas, entretanto, as regiões e os sectores condenados pelo efeito destrutivo deparam, no seu âmbito próprio, com entraves ao desenvolvimento económico e, portanto, criam-se ali condições favoráveis ao fascismo.》

    Os esboços de um novo “modelo integrador” estão à altura do desafio colocado pela “realidade dos fatos”?

    Talvez sim. Talvez não. É preciso testá-lo aplicando-o num caso concreto.

    Haveria exemplo tão contundente da falência dos modelos como a presente situação no Brasil?

    Frente à irresistível ascensão do neo-fascismo no Brasil, conjugada com a melancólica obsolescência da oposição, num cenário onde se apresenta “a variedade de fenómenos que distinguem o capitalismo na época actual”, só estudando o que não aconteceu poderemos elucidar o que agora está sucedendo.

    Qual a forma a ser assumida por este estudo? Talvez… um romance.

    E qual a linguagem deste romance? Longe de descrever o mundo, a linguagem cria um mundo. Por isto a linguagem está no âmago da luta política.

    Não há movimento revolucionário sem uma linguagem capaz de expressar a condição a que estamos submetidos, e, ao mesmo tempo, nossa ação para superá-la.

    Por sua vez, talvez já não faça o menor sentido escrever romances atualmente. E também os modelos de expressão artística estejam falidos e obsoletos.

    Então…

  3. João, no item 3 do seu texto você tece algumas considerações sobre o ser humano como constituído pela infelicidade, descontentamento e no interminável embate de assumir ou não a liberdade. Neste sentido, posso arriscar e sugerir que você têm uma visão trágica do ser humano? Digo trágico como uma leitura do ser humano que se inicia com os gregos na antiguidade e no mundo moderno teríamos como representante máximo Fyodor Dostoevsky.
    Grato
    José Luiz

  4. José Luiz,
    Desde há muito tempo que eu penso nessa minha contradição. Por um lado, sou spinozista, determinista. Por outro lado, gosto muito de Kierkgaard e partilho a sua dimensão trágica da vida. Encontro a indissolúvel complementaridade destes aspectos no teatro grego. O coro narra a decisão dos deuses, o destino dos personagens. Mas os personagens ignoram o seu destino. Édipo não quer matar o pai nem casar com a mãe, mas é precisamente isso que ele faz. E no Édipo em Colonus Sófocles coloca um deus a dar a Édipo a solução do problema, mas nós ignoramos o que o deus lhe diz. Não creio que alguém tenha ido mais longe do que Sófocles.

  5. JB, quem diria, intromixa acosmismo imanentista & ironia heterodoxa.
    E sem juízo final…

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